Por Gabriela Moncau (Caros Amigos)
A maioria dos moradores da ocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos, dormia às 6h da manhã do domingo (22), quando as bombas da Polícia Militar levaram gás lacrimogêneo dentro dos barracos. As 1700 famílias, cerca de 6 mil pessoas, mal puderam pegar seus pertences quando a operação militar – com o ostensivo contingente de 2 mil policiais, além dos dois helicópteros águia – os colocou para fora de casa embaixo de tiro de borracha.
Apesar de a tragédia já estar anunciada, os moradores ainda traziam a sensação de vitória comemorada na sexta-feira (20), quando a reintegração de posse teoricamente havia sido anulada temporariamente pela Justiça Federal. O que valeria, todos pensavam, seria o acordo firmado na quarta-feira (18), em reunião entre advogados dos moradores, o senador Eduardo Suplicy, deputados estaduais e federais e representantes da massa falida da empresa Selecta, de Naji Nahas, proprietário do terreno, que suspendia por 15 dias a retomada da área.
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Em meio à desocupação, uma oficial de Justiça ainda entregou decisão do juiz federal Samuel de Castro Barbosa Melo de suspensão do despejo. Destinada aos comandantes das polícias Militar, Civil e Guarda Municipal, o documento foi recebido pelo desembargador Rodrigo Capez. Sob a alegação de “conflito de competências”, a ordem não foi acatada. Rodrigo Capez, coincidentemente, é irmão do deputado estadual Fernando Capez, do mesmo PSDB do prefeito de São José dos Campos, Eduardo Cury, e do governador de São Paulo (em última instância chefe da PM), Geraldo Alckmin. Quem manteve a decisão de reintegração, mesmo depois de acordo firmado com o próprio proprietário da área, foi a juíza da 6ª Vara Cívil de São José, Márcia Mathey Loureiro.
O que aconteceu lá dentro?
“Motivos de segurança”. Foi essa a justificativa da PM para impedir que qualquer pessoa passasse a barreira da Tropa de Choque para entrar na área do Pinheirinho. No máximo a TV Globo, com coletinho à prova de balas, pôde se aproximar um pouco do trator. De nada adiantou os moradores insistirem para pegar seus pertences, ou ao menos os documentos que não tiveram tempo de apanhar. Tampouco os apelos da imprensa ou os esperneios dos parlamentares que tentavam fazer alguma coisa. Moradores chegaram a relatar que tiveram seus celulares recolhidos para impedir que registrassem a ação. Que tipo de abusos aconteceram lá dentro? O que fez a polícia quando a maioria dos moradores já estava do lado de fora? Ninguém sabe, ninguém viu.
Parte da população resistia como podia. Montavam barricadas e queimavam carros para dificultar os ataques policiais, atiravam pedras e pedaços de paus. O Estado, no entanto, era desproporcionalmente mais forte: com cavalaria, carros blindados, bombas, gás, tiros de borracha e de arma letal. “Meu marido foi baleado pelas balas da Guarda Municipal. A gente não estava confrontando, a gente estava indo embora para proteger o nosso bebê de 10 meses”, ouvia-se no dia da desocupação da mulher de um homem que teria sido levado para o Hospital Municipal de São José dos Campos em estado grave. Há inúmeros vídeos que flagram policiais militares e da Guarda Civil Municipal (GCM) apontando seus revólveres contra a população. Muitos tiros eram disparados para cima e em direção ao chão.
Gritos, choros, correria, tiros, fumaça, ambulância, muitos feridos. As ruas em torno do Pinheirinho pareciam um campo de guerra. Os moradores que saíam da ocupação eram encaminhados à triagem: algumas tendas brancas que foram montadas no Centro Poliesportivo do Campo dos Alemães, logo ao lado, onde deveriam se cadastrar. O papel com a senha ou a pulseirinha azul dariam o direito para as pessoas voltarem às suas casas pela última vez e retirar seus pertences. Enquanto estavam nas tendas, no entanto, os tratores passavam em cima dos barracos, com tudo dentro. Os que chegaram perto da grade para gritar desesperados e atirar pedras foram respondidos com bombas, quase ininterruptas ao longo do dia.
Campo de concentração
“O lugar mais parece um campo de concentração do que de refugiados”, observou bem a jornalista Maíra Kubik Mano referente ao parque que abrigava as tendas de triagem, em matéria para a Carta Capital. Quando as bombas chegaram dentro das tendas, não havia para onde correr. Muitos passaram mal com a fumaça tóxica, principalmente as várias crianças que ali estavam. Um militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, foi espancado e levado preso. Agora passa bem, mas recebeu tratamento médico com uma algema nos punhos.
“Considerando o tamanho da área e da operação, constatamos que foi uma ação tranquila. Houve manifestação, houve resistência, atearam fogo em carros, mas a polícia interveio e pessoas foram presas”, declarou o capitão Antero Alves Baraldo, chefe de Comunicação do Comando Leste da PM paulista, em coletiva de imprensa. Ao menos 34 pessoas foram presas.
Mortos e desaparecidos
O número de feridos, desaparecidos e os muitos relatos de mortes permanecem nebulosos. Além da falta da transparência na operação em si, o fato de a repressão ter sido constante fez com que, na correria, muitas pessoas se perdessem umas das outras, principalmente crianças de seus pais. “Veja quantas crianças estavam correndo sozinhas na rua embaixo de bomba, botei pra dentro de casa”, contou uma senhora, moradora de uma casa há 3 quadras do Pinheirinho, mãe de três filhas que moravam na ocupação, apontando para três pequenos. Os hospitais não podem informar sobre feridos e possíveis mortos. O que se quer esconder?

Antonio Carlos dos Santos, um servidor público de 63 anos, deixou o município de Caçapava para ir atrás da irmã e de seus três sobrinhos, dos quais não tem notícias desde a desocupação. “Estou desesperado, não temos mais família em São José, ela teria ido me encontrar em Caçapava”, afirma.
Recém desalojados, os moradores do Pinheirinho foram encaminhados para três abrigos: dois organizados pela prefeitura e um pelo próprio movimento em contato com um padre, na igreja do Campo dos Alemães. “Estamos enfrentando dificuldades para levantar as informações de quem está faltando, pois nos abrigos da prefeitura a polícia não nos deixa entrar”, informou Claros, com preocupação.
Letícia Rabello, professora de São José que apoia a ocupação do Pinheirinho e vem atuando no local em ajuda às famílias, afirma que “há mortos e feridos, mas estão escondendo”. “As famílias de mortos não estão falando porque estão recebendo ameaças”, diz.
Nenhum órgão do Estado ou Município publicou até agora nenhuma lista oficial com número de feridos.
Condições dos abrigos
Na quarta-feira (25), após a igreja do Campo dos alemães alegar que não tinha condições para continuar abrigando as famílias, cerca de mil pessoas se deslocaram até um alojamento da prefeitura, no ginásio do Parque do Morumbi, zona sul de São José dos Campos. Depois de caminhar por 4 quilômetros embaixo do sol, viram-se em um local pequeno para a quantidade de pessoas, sem água, e abafado. Os únicos dois banheiros (para mil pessoas) com chuveiros e descargas sem funcionar. Até o final da tarde ao menos 4 pessoas passaram mal e tiveram de ir para o hospital. Apenas depois das 18h, um carro-pipa chegou para abastecer a caixa d’água do ginásio. Lá está sendo feito também o cadastramento das famílias que receberão R$ 500 de aluguel social pago pelo governo do estado.
No Caíque, nome como é conhecido outro abrigo da prefeitura, próximo ao Pinheirinho, a reclamação principal é das condições dos banheiros. Solange da Silva afirma que as luzes ficam acesas a noite inteira, dificultando o descanso e que toda a sujeira do lugar foi limpa por um mutirão das mulheres.
'Coleiras'
Ao entrar nos alojamentos, todos têm de colocar uma pulseirinha azul, com a qual são identificados quando andam pelas ruas. “Quem sai aí fora com a coleira – porque essa pulseira é uma coleira – apanha”, relata Sineide Sousa de Jesus, diarista de 42 anos, denunciando ainda que estão dormindo embaixo de fezes de pombo, que caem de cima do ginásio.
Ainda nessa quarta-feira (25), 13 casas abandonadas do bairro Rio Comprido, em São José, foram ocupadas por famílias que saíram do Pinheirinho. A Defesa Civil, no entanto, condena as residências por estarem em área de risco. A região foi abandonada depois de um deslizamento que matou 4 pessoas no ano passado. A prefeitura já entrou com ação judicial para retirar as famílias.
Naji Nahas
É imprescindível, ao analisar o caso do Pinheirinho, ater alguma atenção ao proprietário dessa área de mais de 1 milhão de metros quadrados. A terra pertencia a um casal de alemães (daí o nome Campo dos Alemães do bairro ao lado), que foi brutalmente assassinado em 1969 sob circunstâncias até hoje não esclarecidas. Não há nenhuma informação de como essa terra, deixada sem herdeiros e portanto automaticamente sob responsabilidade do Estado, passou para as mãos do empresário Naji Nahas.

Libanês naturalizado brasileiro, Nahas chegou no país ao final dos anos 1960 com milhões de dólares para investir. Começando com uma criação de cavalos, nos anos 1980 era um capitalista influente e mais rico do que quando chegou, um dos grandes nomes do investimento da Bolsa e Valores do Rio de Janeiro.
Seu nome começou a ficar sujo em 1989, com a quebra da bolsa carioca. Acusado de manipular preços de ações por meio de laranjas para inflacioná-las até vendê-las por um preço que o interessasse, Naji Nahas perdeu todo o crédito que acumulara, afundando todos que estavam na sua bolha, ao menos 6 empresas. Depois de alguns meses fugindo da polícia, foi preso sob regime domiciliar. Condenado a 24 anos de prisão e multa de 730 mil reais por crime contra a economia popular, crime do colarinho branco e formação de quadrilha, Nahas foi declarado inocente em 2004. Nahas voltou a aparecer nos jornais com a operação Satiagraha, comandada pelo então delegado Protógenes Queiroz, quando foi preso novamente sob acusação de lavagem de dinheiro em paraísos fiscais.
O terreno do Pinheirinho, pertencente a gama de propriedades da falida Selecta, de Naji Nahas, está avaliado hoje em aproximadamente R$ 180 milhões, valor que, se descontado da massa falida, se abaterá da dívida milionária que Nahas acumula. Em dezembro de 2011, o débito da empresa em IPTU com a prefeitura de São José dos Campos alcançava R$ 15, 2 milhões.
Especulação imobiliária
Antes completamente abandonado, o terreno do Pinheirinho foi ocupado por 8 anos pelas famílias que foram despejadas, já contando inclusive com plantações, comércios e igreja. Alguns desabrigados assistiram com tristeza a demolição, na terça-feira (24), do barraco onde eram realizadas as assembleias da ocupação, batizado de “Quilombo dos Palmares”.
Se o local for enquadrado como uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), como parte do movimento quer, o bairro teria de ser destinado à moradia popular e certamente teria seu valor diminuído no mercado. Os interesses do mercado imobiliário aumentam também à medida que a área está próxima a um setor industrial de alta tecnologia, além de fazer fronteira com condomínios de luxo de Jacareí, cidade vizinha.
No momento em que a reintegração era feita, centenas de pessoas das cidades vizinhas chegavam a São José dos Campos para prestar solidariedade às famílias e, na medida do possível, resistir junto a elas. Por volta das 14h, a rodovia Presidente Dutra foi bloqueada, em protesto, por volta de uma hora e meia. Pouco depois manifestantes se encontravam, cantando gritos de ordem e indignação, em frente à casa do prefeito. Em apenas 3h de articulação, um ato que reuniu cerca de 600 pessoas na capital, embaixo de chuva, fechou todas as pistas da Avenida Paulista.
Na segunda-feira (23), o MTST ocupou o Ministério da Justiça em solidariedade ao Pinheirinho e com o objetivo de pressionar o Governo Federal a tomar providências a respeito da situação em São José dos Campos. Enquanto isso, mais 600 pessoas faziam ato na frente do Palácio dos Bandeirantes em São Paulo, na Avenida Morumbi. Na terça-feira (24), manifestantes bloquearam a rodovia Anhanguera, na região de Campinas.
Dia 25 de janeiro, aniversário de 458 anos da cidade de São Paulo, mais de 1.500 pessoas se juntaram na Praça da Sé, para protestar contra as ações militares na região da “Cracolândia” e no Pinheirinho. O governador do estado, Geraldo Alckmin, não seguiu sua agenda oficial, com medo de encontrar a população indignada. O prefeito Gilberto Kassab, no entanto, não deixou de comparecer à missa e, rodeado pelos manifestantes, não conseguiu escapar dos ovos.
A urbanista Raquel Rolnik, relatora da ONU pelos direitos à moradia, encaminhou uma carta de Apelo Urgente e Declaração Pública para a Missão Permanente do Brasil em Genebra, com material de denúncia às violações feitas no que está começando a ser conhecido como “Massacre do Pinheirinho”. O deputado estadual Carlos Gianazzi (PSOL) anunciou que também está preparando um dossiê a ser entregue ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) pedindo investigação a respeito dos atos da juíza Márcia Loureiro e da presidência do Tribunal de Justiça que avalizou a decisão da desocupação.
Os advogados do movimento afirmam que não desistirão de desapropriar a área de Naji Nahas para a construção de moradia popular. “Perdemos essa batalha, mas a luta continua”, gritava um jovem enfurecido no dia 22, com um pano cobrindo o rosto e uma pedra na mão.
Pinheirinho resiste bravamente.